terça-feira, 31 de maio de 2011


"Diferenças em família"

Quando somos crianças tudo é gostoso. Mesmo no meio de tantas dificuldades tudo estava bom. Minha infância foi difícil, muitas privações, divisão de alimentos, roupas sempre ganhadas de alguém. Não importava, eu era uma criança terrível, fazia meus dias render mais de vinte e quatro horas. Brincava muito na rua e brigava também, sumia por horas, chegava já ao anoitecer e apanhava. Pensava: Não faz mal, amanhã vou brincar de novo, eu sou criança! Sempre fui muito justa e protetora, acabava brigando por todos.  Defendia meu irmão mais novo um ano e três meses como uma mãe defende sua cria. Nossa! Quanta diferença de idade. Mas ele era frágil, sensível e muito chorão. Eu era brava, a valentona. Enfrentava o que fosse, jamais corria de uma briga. Me colocava no lugar dele, não permitia nem que minha mãe lhe desse um tapa, nas artes estavam os dois, eu achava que  tinha que apanhar por ser mais velha. Me colocava diante dele, abria os braços e falava: Ele não tem culpa mãe.  Fui eu! Ele me acompanhava nas loucuras de crianças, eu era o super herói preferido dele, mesmo sendo uma menina. Ao deitar eu cobria minha cabeça, chorava baixo, meu corpo ardia das surras. Não entendia porque para educar tinha que bater. Eu era muito criança para saber, mas era extremamente diferente das outras da minha idade. Achava incoerente uma criança ter que fazer comida e cuidar da casa com oito anos. Nesta época nós já trabalhávamos para trazer dinheiro para casa. Fazíamos carreto na feira, limpávamos ervas daninhas dos terrenos, lavávamos o chão do açougue, achávamos sempre algo a fazer, tudo que ganhávamos, dividíamos ou levávamos para casa. Em um outro momento contarei tudo que vivemos juntos na nossa infância, foi maravilhoso. Fui tomar conta de uma criança de oito meses, meu irmão foi trabalhar na lavanderia do bairro. Eu estava com dez anos e ele com nove. Essa era minha maior diferença, minha raiva e meu amargo, queríamos brincar, a responsabilidade de trazer dinheiro para casa e comprar alimentos não era nossa.  Os anos passaram, me tornei uma adolescente indomável, esse realmente era o termo. Mas não mudei minha forma de ser. Eu enfrentava um adulto de igual para igual. Saia escondida para dançar, minha mãe trabalhava em uma limpadora a noite, quando eu chegava levava cada surra de perder a pele. Minha mãe falava: Qualquer dia te mato de tanto te bater, uma menina tem que ficar em casa...seus irmãos estão! Eu olhando em seus olhos respondia: Se  acha que tem direito de me matar, que o faça, afinal você me colocou no mundo. Pode bater, eu já fui mesmo. Lógico que apanha mais ainda. Jamais eu perderia qualquer coisa, só porque ela iria me bater, o pior que ela sabia, quanto mais batia, mais eu fazia, essa era a nossa diferença. Completei catorze anos já no fim do curso de datilografia comecei a  trabalhar e estudar a noite  Naquela época saiamos dos bairros de madrugada para chegar a cidade, a noite, direto para escola. Logo meu irmão também começou a trabalhar em empresa. Saíamos e voltávamos juntos. Uma noite chegamos em casa cansados e com fome, mais de meia noite e meia. Entrei no quarto, minha mãe estava coberta até a cabeça, acendi a luz e perguntei se estava bem. Ela respondeu um pouco enrolada que estava. Não achei que estava, puxei a coberta. Fiquei olhando sem falar uma palavra, ela estava com o rosto machucado e a boca também. Eu disse: Foi o pai? Ela balançou a cabeça com um sinal que sim e completou, deixa para lá e virou de lado. Fiquei louca, espumei de ódio. Como uma mulher que trabalhava em dois lugares, sempre sustentou os filhos, mantinha a casa e um homem que bebia até altas horas da noite e dormia o dia todo pudesse suportar isso calada. Isso que eu gostava muito do meu pai, mas naquele momento não. Fiquei na cozinha igual um vigilante, esperando ele chegar. Meu irmão chateado pedia calma, que minha raiva não adiantaria. Sempre foi assim, dizia ele. Eu disse: Era assim, já crescemos e pagamos as contas também, não temos mais que ver esses absurdos. Meu pai entrou, sentou e ficou me olhando. Eu lhe perguntei: Porque isso? Quem pensa que é para tal covardia? Ele levantou e disse: Bati nela e bato em você! Não pensei duas vezes, nos pegamos feio a socos e tapas. Eu gritava: Nunca mais encosta um dedo na minha mãe! Meu tio pulou o muro e me segurou, jamais soube de onde tirei toda aquela força, sei que dei um trabalhão, pois meu tio não conseguia me dominar. Minha mãe só chorava. Depois que passou a confusão, fui para o quintal, me sentei na grama e chorei muito. Eu estava arrependida por tudo aquilo, mas não encontrei outra forma de agir. Não entendia porque batia em sua mulher, mãe dos seus filhos. Engraçado, depois daquele episódio, minha mãe não me bateu mais. Ela,  da sua forma entendeu que eu era danada porque queria viver como qualquer criança, qualquer adolescente, mais eu a amava muito. Por incrível que pareça eu era a "negrinha" do meu pai, apelido carinhoso que ele me deu. Meus irmão brancos como leite, eu morena. Levei uns tapas dele uma única vez, mereci.  Ele era bom para mim. Sempre o defendi, dei banho quando ele chegava sujo e alcoolizado. Eu o buscava nos bares, comigo ele vinha. Tinha uma imensa pena dele como ser humano. Ele se magoou muito com minha atitude. Passado uns dias, tudo calmo em casa, pouca conversa, ele me chamou lá fora. Estava sóbrio. Sentei do seu lado em silêncio. Ele disse: Filha eu te entendi, no seu lugar acho que faria a mesma coisa. Quando ele levantou eu o abracei e chorei. Pedi desculpas. Ele me olhou e disse: Eu te ensinei a brigar e te ensinei a se defender. Você aprendeu bem...e deu risada. Nunca mais ele bateu em minha mãe, continuou bebendo até falecer. Senti muito sua partida pois éramos cúmplices, sei que por mim ele matava e morria. Éramos amigos. Na semana do meu casamento pedi a ele para não beber, afinal ele tinha que entrar na igreja comigo, ele era meu pai. Foi um dos meus maiores presentes. No dia eu muito nervosa, ele sumiu. Já estava pensando em entrar com meu irmão. Escutei risos e conversas, era ele. Terno, camisa, sapatos, tudo novo. Barbeado, com os cabelos bem penteados com brilhantina. Ele me abraçou e disse: Estou lascado de dívida, vou ter que beber menos ou não pago as prestações e deu risada. Ele era muito divertido quando queria. Mas depois que você casar estou liberado? Quero dançar e beber até de manhã, afinal não tenho mais filha para casar, você é a única. Tudo foi muito lindo, ele entrou comigo de cabeça erguida. Tirou fotos e depois caiu na farra até as oito da manhã. Hoje lembrando de tudo isso, confessando esta parte da minha vida, penso que mesmo com as diferenças tive momentos muito feliz. Meu irmão, esse amor incondicional até hoje, acho que vem de outras vidas. Acho maravilhoso o respeito e carinho que temos um pelo outro, eu o amo muito. Meus pais me educaram da forma que eles achavam correto, mas deixaram muita lição de vida, sinto saudades. Agora uma mulher madura entendo tudo aquilo que passamos quando crianças. Mesmo sendo uma criança danada e questionadora, eu queria família, era só  o que eu queria. Nos desencontros da vida nós não éramos bem uma família. Os últimos anos de vida da minha mãe foi união, hoje tenho meu filho, meu irmão e os seus. Confesso que tudo isso é o que mais vale no mundo. Família. Quero apenas deixar uma observação: Quando menciono irmãos, eu tinha mais um, infelizmente ele era um ser humano difícil de se envolver, estava sempre a parte de tudo. Não houve convivência e cumplicidade. Quem sabe em algum momento eu resolva escrever sobre ele. Que ele esteja bem e acolhido pelo anjos, ele era parte da família que eu tanto ansiava.                                  

6 comentários:

  1. Lindo depoimento! São lições que aprendemos em cada fase da vida. As dificuldades na infância nos trazem grande crescimento e uma determinação para encarar novos desafios quando nos tornamos adultos. Aí então, finalmente aprendemos a valorizar muitas coisas que não valorizaríamos se não tivéssemos tido uma experiência difícil. Muitas vezes o que parece ser uma família desunida aos olhos dos outros; é justamente o oposto. É o núcleo que alimenta a alegria e a dor. É onde cada um aprende com o outro, o que é o verdadeiro e sincero amor ao próximoe e a vida. É onde também se aprende defender-se do mundo hostil, ora com cautela, ora com agressividade.
    As lições ensinadas por pai e mãe nem sempre são compreendidas em sua essência, pois a significância que dão a vida é diferente do jovem que está descobrindo o mundo. Esse conflito só entenderemos muito tempo depois, quando a vida demonstrar, de um certo modo, que eles estavam certos e só queriam dar proteção às suas crias. A vida seguirá o seu ciclo... O mundo se transfomará e os hábitos e costumes irão mudando diante dos nossos olhos. E aqueles que forem espertos que se adaptem ao novo ritmo. E diante dessa lógica façam de suas reminiscências algo forte, marcante e proveitoso. Só assim a vida seguirá no rumo de novas lembranças boas; e elas valerão como um ensinamento a ser transmitido com muito empenho para todos que souberem identificar o sentido de cada coisa, assim como você fielmente fez.
    Parabéns.... Bjs e bjks

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  2. Sabe Má.....a vida dos ensina tantas coisas, passamos por situações tão marcantes, sorrisos e lágrimas....enfim.....hj senti uma mulher madura no que sente em relação à uma infância difícil.
    Apesar de tudo o que viveu, conseguiu escrever e transmitir com doçura, as lembranças que te marcaram, porém não te endureceram. Já te admirava Má, sem mesmo te conhecer direito....e agora mto mais!!! Parabéns minha amiga.....pelo depoimento de coragem e força!! Beijokasssss repletas de admiração e respeito

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  3. Você é uma grande e lindíssima mulher. Como consegue lembrar detalhes de sua infância? Imagino o quanto faz pessoas felizes com seus sentimentos tão nobres. Tudo que você passou e aprendeu passa com palavras tão doces e carinhosas. Eu queria você prá mim mesmo que fosse como uma irmã. Não pare de escrever nunca. beijos & beijos

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  4. É, nossas histórias que nos constroem seres humanos, de onde tiramos a seiva da vida, e que desenha nossa personalidade, suas histórias me fazem compreender hoje porque você é uma pessoa que sempre advoga a favor de quem precisa com coerência, que socorre, se preocupa e alenta.
    E assim é e continuará sendo, porque tens plantando dentro si, um espírito batalhador, corajoso e benevolente. parabéns pelo texto!!!!!
    bjs,té+.

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  5. O que seria da gente hj sem um passado né não?
    Seja lá o qto tenha sido difícil, fácil ou mais ou menos, somos pessoas melhores qdo conseguimos aprender com o passado!

    Parabéns pelo texto e espero que sempre continue sendo essa pessoa maravilhosamente corajosa!
    Bjks lindona, Thá.

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  6. Como pude perceber você poderia ter escolhido qualquer caminho ruim na sua vida, acho que já veio pronta. Batalhadora, amiga, companheira, solidária, mulher forte. Um dia quem sabe saberá quem eu sou. Acompanho sua luta para criar e educar seu filho e suas dificuldades. Acompanho seus sorrisos e brincadeiras nos encontros das comunidades, soube de muitas dificuldades por outras pessoas, mas não por seus lamentos. Te admiro para caramba ou algo mais.

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